UMA CRUZ DE ALGODÃO DOCE
Naquele tempo, Jesus olhava a multidão se aproximando do cênico Calvário. Do alto da cruz, cuja sombra se estendia até o limite da plateia, o pseudocristo ouvia o chiado de cochichos e de pés se arrastando. Os contrarregras esforçavam-se para manter em ordem as filas dos mais de trezentos crismandos que, de mãos dadas, iam em direção à cruz e se acomodavam na brita coberta de tiras de lona.
Dependurados, presos por um nó um tanto apertado, os braços do Jesus formigavam. Sob a luz leitosa da noite, a mistura de mel e de corante vermelho do sanguinho, sua barba junina e sua túnica de TNT pareciam menos ridículos. Entre gemidos e suspiros, o ator se preparava para começar a encenação. Quando soltou um muxoxo, seguido de outro, percebeu que não havia retorno na caixa de som e afligiu-se: estaria desligado o microfone? Sem bateria? Que nada, ficasse tranquilo! O caso era que o cara lá queria dar antes umas palavrinhas; e dedilhou no violão uma melodia hipnótica enquanto arengava qualquer coisa que ninguém mais se lembra.
Por acaso permitiu que o moribundo enfim falasse:
“Ó Pai, (diz fitando o céu) o que houve com o mundo? Vejo tanta ingratidão e injustiça que meu sacrifício se torna mais doloroso. Quantos jovens perdidos por tão pouco. Irmãos (olhando para o público), por que não me seguem? Não sabem que, quanto mais se afastam de mim, maior a solidão, maior o sofrimento? Lembram-se dos momentos que estivemos juntos? Sim, nesse momento mesmo. Você me pediu ajuda e eu o atendi. E sempre atenderei, porque meu amor é infinito. Por isso estou aqui. Nunca se esqueçam…
“Pai dos céus, (diz com grande esforço…) cuida de vossos filhos” (…e morre).
***
Em filas novamente, os futuros soldados da Igreja partiram para o outro pátio — iam agora para só mais um momento de reflexão, ornado de simbolismo de tazos da Elma Chips. Ladeavam o cenário minúsculo, alguns a observar o homem de cabeça pendida, as madeixas a cobrir-lhe o rosto. Ele, sentindo o sangue amarelado se acumular entre os dedos dos pés ou cair, lá dos cotovelos, quando a gota viscosa não pudera mais se esticar, respirava com vagar, a fim de conter o mínimo movimento abdominal, que evidentemente persistia, quase imperceptível, mas visível o bastante para provocar comentários inoportunos: “Óia lá: continua vivo!”
O burburinho ia já longe e naquele instante passava o último grupo de adolescentes, do qual fazia parte esta garota que olhava para o alto, espremia os olhos; parecia estar muito tocada pelo que acabara de assistir. Súbito, estacou, e rapidamente retomou o passo, decerto para evitar que lhe chamassem a atenção. E foi aí que, aos pulinhos em direção a seu grupo, piscou, abriu um sorriso grande e disse, sem a menor inibição:
— Rapaz, que pernas!
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