NÁUFRAGA

Tudo apontava para um desastre — tanto a previsão do tempo no smartphone, LCX o escambau, há duas horas sem rede, quanto a própria natureza antecipavam o trágico desenlace.

— Vai cair o mundo, meu povo. É voltar pra casa, São Pedro não quer diversão.

— E perder a viagem? Nããã — de hoje não passa. Não sou feito de açúcar!

Era já o terceiro dia de mau tempo, o que tornava o argumento de Júlio ainda mais persuasivo. Não a ponto, porém, de convencer o ex-sexo frágil:

— Melhor deixar, coração, não era mesmo pra ser — rebateu a noiva.

— Sei não… sabe quando a gente sente que algo não está legal? — ponderou ainda D. Vera, que não gostava de ser chamada de dona.

O feriadão — quatro dias de pândega — prometia. E na véspera não se pensava em outra coisa: Fim de semana é cachaça, é cheirão de mato, lambari no fubá fritinho e cachoeira no lombo! Duro era se chovesse…, fatalidade cuja previsão fora ritualmente monitorada ao longo da semana. E se o JN garantia chuva só depois do Carnaval, precisa do que mais?

O grande dia chegado ou, quase lá, na véspera, o sol da manhã — da manhã! — fazia doer a vista, e o calor de vertigem obrigava a descumprir o preceito da cartilha de práticas sustentáveis que recomendava o sadio proveito do frescor natural em detrimento do refrigerado e que era distribuída no departamento para, alegava-se, minimizar danos ao meio ambiente, à qual, porém, nos corredores do órgão estadual eram atribuídas outras finalidades — “Mãos de vaca”, “Em Curitiba ninguém passa calor!”, “Economia? vai tudo é pro toba do Ratão!". E, de madrugada, pesado do suor que reteve, o céu começou a gotejar.

Novo amanhecer, hora da partida. Espera. Espera. Não passa? Então vai! Em dois automóveis, e com muito cuidado, é claro. Meio do caminho, uns chuviscos e só. Era o sinal: Eba! Tchau, borocoxô, o fim de semana começô! Buzina daqui, buzina dali, ultrapassa acenando da janela, gargalhando, sacudindo o carro inteiro. O pai entrava na onda, achava graça; a mãe não: passou foi um pito quando desceram no posto de gasolina:

— Parem já com essa folia!

Três horas e meia de estrada úmida e, no destino, idem, um aguaceiro. Almoço, truco, rede, janta; e de amarelo nada, só cinza, e verde, que é esperança.

Domingueira, às sete, D. Vera, ou melhor, Verinha anunciava:

— Está um dia lindo!

A notícia era boa, mas a farra, em casa mesmo, tinha sido grande. Os olhos ardiam, a claridade ofendia. E os jovens viraram de lado, cobriram-se, que cinco minutos a mais não bastavam. Horas depois:

— Oh lindeza! Que tempo é esse, minha sogra? — disse Júlio, de olhos inchados.

— Levanta duas da tarde, quer aproveitar o quê?

— E o Flavinho, e a Amanda? Seus filhos tão lá, dormindo.

— Essa juventude só sabe dormir.

— Não importa: Amanhã será o dia!

E foi? Tsc, tsc, tsc! E sem ilusões a perder — a segunda já nascia pálida e morrinhenta, como se tivesse também ela caído na gandaia. O pior, a bem dizer, é que seria a derradeira chance de aproveitar aqueles dias de trégua. Sairiam na terça, lá pelas duas, a tempo de retornar antes do escurecer. E foi pensando nisto que Júlio sugestionou:

— Seguinte, meu povo: já molhou o que tinha de molhar; daqui pra diante vai ser só essa água-móia-tonto, sem vento nem nada. 

E concluía, exaltado:

— Bora pro rio! Bora é pro rio, galera!

— Sei não, amor, é perigoso — era Amanda, e disse pegando de leve o antebraço do noivo.

Assim, principiou-se a discussão entre os mais velhos e os mais novos acerca da incerteza meteorológica. Valia a pena arriscar um passeio de barco? Os pais, cedendo à chatice dos jovens sob a liderança de Júlio e acometidos pela lembrança de seus anos rebeldes, anuíram à proposta. Foram até o barco — tiveram o cuidado de conferir os equipamentos de segurança – e saíram animados, com planos de voltar em poucas horas. Subiram a correnteza que parecia mais forte do que deveria. E quando a chuva reiniciou a brincadeira já tinha perdido a graça.

— Lá se vem outro toró… dá pra acreditar? — disse alguém, os olhos para o alto e um imperceptível esgar de arrependimento. Em seguida gritou: — Vamos voltando, pessoal!

De fato voltariam, se o motor do barco funcionasse. Era muito azar. O excesso de umidade causou algum dano ou fora desleixo do caseiro que andava descuidado de suas obrigações? De repente, ninguém era mais o mesmo: um denso remorso brotara do fundo infértil de suas consciências. Viagem desastrosa, nunca deveria ter acontecido. E de onde vinha tanta água? Por que chover tudo de uma vez? 

Em pouco tempo, o barco virou, arrastado por uma onda violenta. Dispersos na confusão, alguns entraram nos botes e desapareceram na bruma; outros foram levados pela correnteza ou aparentemente ficaram submersos. Amanda, agarrada a um sólido coberto de musgo, contemplou a embarcação de ponta-cabeça, as águas levando os familiares que seus cílios encharcados permitiam distinguir em meio à espuma branca. Não via o noivo, seus pais, seu irmão; apenas ela restara, sozinha, a tremer de frio e de medo. “Não vale a pena resistir”, refletia, enquanto a água forte açoitava sua carne, confundindo-se com as suas lágrimas. Exausta, relaxou por um breve instante os músculos cuja força minguava tanto quanto ela perdia a vontade de viver.

***

O resgate encontrou o corpo de Amanda após quase dois dias de buscas. Tiraram-no do rio em um estado lastimável. Negro e dilacerado, como se fora mordido por piranhas, as algas verde-escuras, que o envolviam, dando-lhe um ar de monstro mitológico. Os familiares e amigos, o noivo Júlio, todos sobreviventes, choravam litros de horror e de culpa.

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