TODOS OS CAMINHOS LEVAM A
Do lado de lá, fumam ao redor de canteiros com palmeiras enormes, e crianças se divertem agachadas sobre pedrinhas brancas, e advogados, e empresários, e servidores públicos, reunidos no átrio, de passagem, com passos seguros; bem vestidos, extravagantes alguns. Passo a catraca, ao rumor ameno de motores e buzinas, ganhando este vasto mundo da noite. Mas que importa a paisagem, se o que vejo é o beco? Deambulo. Na testa uma ruga, os olhos baixos, o cabelo certamente despenteado. É estranho: não faz muito que, a vida, assim, nas pequenas coisas, me parecia boa. Gozava o sabor da sobremesa, refrescante e deliciosa, a satisfação do banho e da roupa limpa, o alívio da sombra das marquises, da brisa fresca sob o sol ardente. Sem que a mesma vida, contudo, perdesse sua gravidade, sua dimensão terrificante, dadas pelas incertezas em torno de seu fim.
E logo no dia do pagamento.
Planejara, semana antes, contara, sonhara: Aline, a garota do caixa... Ai! Não é brincadeira — se o espírito não está pronto, o que falar da carne?
— Caio.
Tinha deixado o furacão na esquina, entrado na secretaria, sentado num dos bancos gastos e talvez pouco confortáveis. No entanto, continuava a escutar ao longe ruidosas reflexões.
— Caio...
O corpo quase pula; ela, sorridente, brincalhona. Chega gente – e ainda por cima, da minha turma, para aumentar os ventos da tormenta. Passam os minutos, ainda estou ali, enchendo a cara de chá. Ela atendia um atrevido que de alguma forma, sim, de alguma forma se insinuava para ela. Eis o problema das simpáticas: como saber se estão nos dando bola? Estava feliz, e eu não contava com a sua felicidade. Outro dia, sem ocasião de parar para dar um sinal de mim, vi-a tristonha, ensimesmada (coisa curiosa!). Foi então que encenei toda a cena futura:
— Que tristeza é esta, Aline? Brigou com o namorado?
Opção A: Ela diria que não tem namorado — informação previamente obtida. Ou, opção B, diria que não fica triste com namorado, não. E minha resposta (para a hipótese improvável):
— Como não tem, uma moça tão bonita e tão simpática como você!
Ela agradeceria, somente. Já no caso da reação de opção B:
— Ah! então deve ser fome, comeu miojo de novo? (ainda outro dia, encontrei-a carregando uma sacola de supermercado, ia àquela hora — uma da tarde — trabalhar, e não tivera tempo para "botar uma colher de feijão na barriga". Comprara pelo caminho um pacote de macarrão instantâneo, com o qual se sustentaria até o fim do expediente.)
— Não, Caio, desta vez não! – diria rindo.
Tudo realizado com pleno domínio, e com a maior altivez.
O dia chega; o cenário é o que se viu: um idiota sendo atendido — aguardo-o tomando chá. Alguém mais aparece, toma minha frente — penso, resignado: chegara antes de mim, saíra por um instante. Como quiser, companheiro, o problema não é consigo. É aqui — se pudesse mostrar-lhe-ia a alma crispada, num abismo profundo. “Vai, é a sua vez”, diz-me uma voz, que mais ninguém ouve. Penso demais; o furão passa, e fico fuçando o celular, mordendo o copinho plástico.
Ela me chamava pelo nome:
— Caio...
Levanto-me, pego meus troços. Ela faz indagações:
— É direito, né?
— É.
— E é Caio do que mesmo?
Na cadeira de espuma gasta, mudo, indolente, cavouco a mochila em busca da carteira. Vou depositando as notas na mesa. Ela faz os cálculos, dá baixa no sistema.
— Posso pegar? (é uma deusa, mas não tem modos.)
Recolhe o pequeno oceano de papel à minha frente. Conta, reconta. Interrompo:
— Deve estar faltando. Quanto é mesmo?
— R$592,50, você me deu 500, faltam... — súbito, começo a procurar trocados. E num instante — “Toma cinquenta...”.
Pegou-o, com ingênuo contentamento, e disse:
— Se quer me deixar feliz, acha aí R$2,50 — e sacou, pronta, uma nota de 10, que deixou suspensa, como se se preparasse para trucar. E nesse exato momento, pela primeira e derradeira vez, fui galante:
— Aline, vou te deixar mais feliz do que você imagina... e tiro da carteira a porção ideal — cinquenta aí, com mais dez, sessenta, setenta, oitenta, noventa, dois e... cinquenta.
— Você é meu herói!
(Chamo-a pra sair? Não chamo?)
Levanto-me com melhores ares, despeço-me amistosamente, jogo o copinho na lixeira específica, vou saindo...:
— Hoje é que você vai embora mais cedo, né?
— É! Hoje saio nove horas — glória a Deus!
— Sexta-feira é tudo de bom! — digo já do outro lado, atravessando a porta de vidro. Ela rebate, a voz abafada, qualquer coisa que já não me recordo. Dou-lhe uma última olhada e desço as escadas com um esboço de sorriso.
Longo, o caminho de volta. Tinha fome; tinha ânsia de ver pessoas, quem sabe me alegrar novamente com o mundo. Vi e fui visto. Ouvi, mas penso que ninguém me ouviu. Um casal tomava suco na mesa ao lado. O menino era realmente um menino, um moleque. A moça, bonita, um tanto exótica no penteado e nas tatuagens — poderia apostar que era sua irmã ou até sua mãe. Tocavam-se sem carinho, dum jeito fraterno. Até o espanto — um beijo! O piá, pele fina e rosada de quem toma Roacutan, de quem se regozija de ver-se livre de devastadores anos de acne. Ela, de olhar sensual e experiente. São irmãos — mas se beijaram. E o filhinho não engole de uma vez o maldito copo de suco, fica dando golinhos e falando dos seus triunfos no Mortal Kombat e das aporrinhações do segundo ano de faculdade (já é adultozinho!).
Do outro lado, uma senhora me observa quando eu a observo. Parece me imitar: amontoo no prato os sachês e guardanapo, levo a bandeja até o quiosque, sou seguido. Desço a escada rolante decidido a terminar o recreio com um milk-shake, um sundae, qualquer doce gelado. Mas a mulher me persegue. Não, não vou sair daqui direto à sorveteria. Por quem a fulana ali vai me tomar? “E olha que acabou de comer um croissant com mussarelas vazando pelas bordas”. Mussarelas. Fujo, olhando de longe, dissimulado, a barraca de gelados do McDonald. Atravesso o saguão, sigo pela calçada, onde uma mendiga agradece a esmola que recebera. O sinal está fechado. Quase nove da noite e os hippies ainda vendendo missangas em frente ao Bradesco.
Segundo semáforo, o sinal é verde para os carros. Paro na esquina, penso ter visto um conhecido, alguém que gostaria de evitar. Olho para trás com muita discrição — a dona Perseguição deve ter tomado outro caminho. A seguir, novo shopping. Deixo passar a entrada principal, convicto e consciente de meu destino: Bob's, BK ou McDonald. As portas automáticas se abrem, dois seguranças conversam. É ali! Aproximo-me, os anúncios me fazem salivar, e a certa altura os novos ângulos revelam a feira de livros num local inusitado. “Ora, vejam só!” Sou levado cegamente às estantes, que, é verdade, não me absorvem num primeiro momento. Desvio os olhos para o outro lado, fecundo de um pensamento premente: “Podia já pedir, né? Eles vão preparando o pedido enquanto eu... Não, não. Só uma olhadinha, não vou comprar nada não”. Como sou decidido. E o que vejo? Muita porcaria, e coisa boa caríssima. No centro do estande, uma mesa coberta de livros com a placa “só 10 reais”, a que no princípio fiz pouco caso, conhecedor que sou da natureza dessas livrarias itinerantes. Escorrego devagar pelo beiral do balcão, admirando o capricho das capas e a criatividade dos títulos, a mão serpenteia, os dedos arrastam, erguem as pilhas empoeiradas, e os olhos se arregalam: peças do Nelson, de conhecida edição, novas, no plástico, pela bagatela de cinco cruzeiros. Também não é assim no desespero: continuo olhando, e encontro mais duas ou três peças do Nelson – “eu vou levar, eu vou levar, eu vou levar” –, uma bela brochura com charges do Jaguar, engraçadíssimas, e, feliz coincidência, um volume de crônicas do Ruy Castro, biógrafo do anjo pornográfico.
Saio do shopping com a sacola de livros, esperando encontrar aberta a sorveteria que há no caminho, onde além de satisfazer as lombrigas, me deliciaria com o prazeroso ato de rasgar a embalagem da nova aquisição, que cheiraria com cuidado para não lambuzar as páginas, e talvez leria ali mesmo, curtinha que é, uma peça inteira.
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