UM PASSEIO COM A MORTE
Morreu o Simão, morreu a Maria, morreu o Hamilton (senhor H., pastor da Assembleia), morreu o Joaquim. Morreram a Jandira, o Amaral e o Dr. Éden. Lembradas também, sumariamente, as mortes estatísticas, as mortes dos amaldiçoados (pois desejaram a de outrem), ainda que excluídas as mortes dos que morreriam sem compromisso especial com a escatologia, tem-se um parágrafo de mortes, e uma introdução fúnebre para um novo tempo.
Eu li: “amigo, a notícia é dura mas precisa ser dada – meu pai faleceu”, e quis recordar de todos esses nomes, revi o álbum mental das lembranças doridas. Mas o Éden cadáver, futuro corpo residente da gaveta número tal, não me afastava dos pensamentos assanhados. Quero dizer, é quase uma obscenidade não se abater diante da morte. Entre as tristezas, no entanto, o enleio de uma aflição muda (quem será o próximo?), a angústia por tantos enigmas, eu via os Coffin dancers e de vez em quando até acompanhava as batidas com o pé ou à bocca chiusa.
Os sábios de sempre também tentaram – vi Berthe morrer como, semanas antes, tinha morrido a mesma Berthe então chamada Renata; viradas algumas páginas, é Fernanda quem se vai, sem que João Paulo pudesse despedir-se. Recentemente havia me surpreendido com a sequência de “sarcófagos inúteis”. Duros golpes de pena que me estontearam, porém não abateram, como se minha indolência fosse umas raízes grossas cravadas no meu sofá, pois nem a marreta da forja do grande José Geraldo Vieira fora capaz de me desenredar.
Claro, a coisa mais importante é a morte. Quando pude, prestei condolências a meu amigo. Aliás, impecavelmente, pois, como se vê, o treinamento foi longo (sete mortes, de janeiro a julho), e segui com a vida, que minha vez por enquanto não chegou. À noite, à hora dos rabiscos, com palavras pintei o David Bowie saindo do elevador e depois dizendo: - Eu não vou falar sobre a Covid. Eu não vou mesmo falar sobre a Covid! Fui me deitar. Tais frases, dum repertório idêntico a todas as mentes que estão por aí, continuaram brotando.
No dia seguinte, avisei quem deveria, quem poderia ir ao velório. Ninguém foi. Talvez seja justificativa razoável a segurança, a prevenção, a saúde pública. Mas em mim fica uma vaga noção, um balbucio, encoberto pelas ondas e dunas e monstros digitais, numa visão turva de fundo do mar: a morte impõe limites à nossa ambição. De que serve tanto esforço? Podíamos simplesmente parar e, com o mesmo dedo robusto do tanto esfregar a tela dita inteligente (smart), podíamos discar o número do próximo defunto, não por prevenção, que amaldiçoa, sim e simplesmente pela normalidade do ato. Que há de mais banal do que uma ligação, do que o convívio?
Não falo dos que já se foram. Estes deixaram suas carcaças mutiladas para viver como lembrança daqueles que coadjuvaram a narrativa encerrada e que ainda não estão suficientemente mutilados. Nem condeno os que falam, os que se ocupam dos que já se foram. Minha bronca é contra os ambiciosos, avarentos, insaciáveis, cheios de novidades, de saberes e pressa. Acuso-os, munido de minha carteirinha de sócio – mea culpa, mea maxima culpa.
E, sim, eu disse a coisa mais importante, o momento mais importante. Provam isso os falecidos, recordados aqui, homenageados (foi tocante o cortejo de sirenes que acompanhou o corpo do tio Joaquim, em vida um fleumático motorista de ambulância), erigidos ao patamar de “lembrança”, a qual geralmente vem polida e é indulgente com os defeitos que antes atazanavam.
Todo mundo diz não estar acreditando quando o terrível momento sobrevém. Diz: “Para mim ele, ela está só dormindo”. A gente nunca se lembra da morte e depois fica sem “conseguir nem chorar”. Parece que o tempo para, quando na verdade o presente é presente até demais. Anos mais tarde ainda é possível recordar cada passo do fatídico dia. É e foi assim. Quando a tumba se fecha, as lágrimas vêm (vieram-me), finalmente.
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