PAPÉIS DESAMASSADOS

Os rascunhos, os exercícios e os desabafos, desta vez, não irão para o saco, se este está cheio, tal qual o do leitor está de tanta repetição. É difícil começar, e a coisa mais autêntica a se escrever num primeiro momento é “não sei o que botar aqui”, na expectativa de pegar no tranco. Às vezes funciona: Nem dedos nem palavras acompanham as imagens se sucedendo, as lembranças logo ornadas de observações espirituosas, frases sonoras, ditos jocosos, o que já me levou a desejar que alguém inventasse um temerário gravador de pensamentos, antes de falarem em Neuralink e Black Mirror.

A segunda coisa a ser dita, consciente do histórico de decepções, é que não vai dar certo e tudo não passa de mais uma tentativa inútil. Coisa que já foi escrita, oportunamente ou não, já nem lembro onde.

Minha solução habitual – e creio que de muitos – para a muquirana das Musas está no verbo recordar. Começando pela etimologia. Recordar (muquirana outro dia explico) vem do vocábulo latino que significa trazer de novo ao coração. E com isso ganho algumas linhas e a admiração do leitor não invejoso, isto é, capaz de se entusiasmar com o óbvio e de reconhecer algum mérito, se não for pedir muito, de quem dá a cara à tapa.

Parto, assim, para o meu histórico antes de desistências do que de fracassos; dir-se-ia fracasso se considerado de um ponto de vista estritamente pessoal, o qual me repugna. Mas toda história requer um narrador, que pode ser no mesmo ato o protagonista – quem sabe um aventureiro ou, com sorte, um mentiroso. 

Tudo começa com a “sagaz fuga do homem da selva”, ainda na áulica era dos ditos blogs ou, mais precisamente, dois anos antes do fim do mundo (2010). Nunca passou da primeira publicação, que era de um videozinho do Darth Vader procurando por seu headphone. A ideia de desenvolver o assunto do título em pouco tempo me desinteressou. Abandonei o projeto, e meu incipiente desejo de escrever se conformou em rabiscar, muito espaçadamente, no verso de capas e contracapas, em agendas velhas, em papéis mais avulsos do que os do Machado. 

Meses mais tarde, a inalar o ar fresco de um recomeço, criei outro espaço, que por algumas semanas me pareceu acertado, bacaníssimo. Eu havia conservado as ruínas do meu fracasso (este sim um preciso e reiterado fracasso), do meu fracasso universitário. Resenhas de livros lidos pela metade, fichamentos idem, anotações ilustradas por caricaturas de colegas e professores. De pouco me serviram para dizer a verdade, mas na época me deixaram ocupado. Saca-valva era o nome desse meu mensário particular e tinha um porquê: adveio de um episódio descrito no que deve ter sido o meu primeiro conto. Era péssimo, claro. Só depois de mãos e mãos de tinta ou de grafite ou nem de um nem de outro, obtive um resultado, digamos, passável. Tire a prova quem o ler:

Atravessaram o corredor, esgueirando-se entre Calois e Monarks, rumo ao balcão mal iluminado e vazio. Entreolharam-se, mudos, um a abanar a canela raspada num pedal abaulado mas áspero e o outro com as sobrancelhas arqueadas e um beicinho de impaciência.

Apelar ao clássico limpar de garganta foi eficaz: da porta que dava para a oficina saiu uma gigantesca criatura, e não seria exagero dizer que caminhava feito um orangotango empenado, mistura de King Kong e Mestre Kami, e deixava a impressão, corroborada por sua voz gosmenta, de que tinha a todo o tempo o nariz escorrendo.

— Vocês gostam de sofrer, hein! – disparou assim que descobriu a pretensão dos clientes recém-chegados.

Nada sensato, certamente, dois folgazões ingênuos viajarem de bicicleta pela rodovia por quase 90 quilômetros, tanto mais numa época e região em que isso era novidade. Conselhos de um velho cacete, no entanto, não os persuadiria. Estava tudo planejado, iria dar certo. Os preparativos, incluindo discussões, ajustes finos nos “veículos” (aspas não eram necessárias, mas colocavam de todo jeito) e treinamentos, levaram semanas. Não só: iam com a mochila esturricada, prevenidos contra furos nos pneus, fome, piriris, lost in the jungle (difícil definir – o mais provável é que se referiam a um mapa). Para eles, só faltava mesmo trocar o freio traseiro de uma das bikes. Como não era dono de farmácia, o velho não se lembrou de informá-los da utilidade de um estojo de primeiros socorros, ainda que não deixasse de lhes aconselhar:

— Pra vocês saírem viajando feito doidos por aí vão precisar de uma ferramenta…

— Ferramenta?

— É.

— Que ferramenta?

Esperaram. Parecia que o velho tirava com a língua uma alface dos dentes.

— O sacavalva.

— Oi!?

— Sacavalva.

Havia um n ou um h sulcado na glabela de nossos aventureiros quando, naquele instante, foram levados por um solavanco na nuca, num ligeiro recuo; movimento este que, aliás, sendo brusco demais para ser espontâneo, traduzia um anseio por demonstrar ao gigante impaciência e confusão. Ele continuou:

 Isto aqui ó: o “sacavalva”(nova pausa para limpar os dentes), pra ajustar o pino do pneu…

— Ah!

Trataram de pagar e deixar a loja a passos largos. Na rua, muito antes de virarem a esquina, como se dizia na época, cascaram o bico. O mais aluado achava graça sem atinar de imediato para a malícia do outro, que imitava: 

-Um ou dois? Tchááá…

Só depois entendeu que o negócio era um saca-válvulas. Até então ria era do desleixo do bicicleteiro, o Yao Ming do Centro-Oeste, lançando o par de freios no balcão:

– Tchááá… Um ou dois? Um ou dois?

Pois é, eu sei que acaba sem final, mas garanto que já foi pior. Impossível continuar a história uma vez que a história real não continuou. E eu poderia usar estória em vez de história para diferenciar uma de outra e assim poupar o adjetivo e o itálico. Mas a moda hoje, em 2022, é andar de bike “feito doido por aí” e não escrever história com e (neologismo que dava engulhos ao Herberto Sales, confiram aí). Não falo em estória, Herberto, muquirana à toa – é desta “tempestade cerebral” que sairão as próximas publicações.

Bem. Ou: em vez de bem eu digo, mal – Mal. Porque aqui eu vou de mal a pior e a odisseia está longe de terminar. Não, eu vou de bem mesmo porque o meu bem é de bem como. Então: bem como a história do sacavalva, que como já vimos ficou sem final, a saga das páginas pessoais, dos diários virtuais ou qualquer outro nome que substitua esta merda de vocábulo blog  a saga não acabou. Paralelo ao Saca, emendei mais um projeto, fingidamente impessoal. Chamei um amigo, o Félix, Félix Marques Pacheco, para a empreitada. Mas prevendo o inconveniente de uma associação espúria e inapelável de nosso comum patronímico com o marquesismo, julgamos por bem homenagear não o sábio Marques, mas o véio Pacheco.

Felizmente, perdi os papéis de rascunho do texto inaugural e, por conseguinte, o movimento pachequista  iniciado pelo Manifesto Virtual do Pachequismo, MVP  e sua vocação de desmentir a calúnia queirosiana, perpetuada n’A Correspondência de Fradique Mendes, foi por água abaixo. Mas não parou por aí. Depois vieram ainda outros, que a criatividade só não é maior que a fadiga. Tinha o Vivendo de Tradução, que era para conter uma espécie de portfólio de meus trabalhos. O Jornal de Ontem, com notícias fresquinhas de ontem. O Jornal do bairro, com as fofocas da d. Maria, moradora da Vila Esperança. O Zona 7, com as badalações de outro bairro, o  Universitário, e críticas mui acadêmicas ao mundo contemporâneo.

Sim, tudo isso. É tanto que nem deve ser verdade. Mas se jamais existiram, um dia quem sabe hão de existir. Escrevendo, de frase em frase, a gente chega lá.

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