VINGANÇA BICHANA
Sempre achei que o diabo não estava na rua, no meio do redemoinho, mas no teto. E não tenteis confrontá-lo com a simbologia: falo do teto, teto mesmo, com telhas de cerâmica, zinco, policarbonato, o que houver. Eis por onde o cão nos espreita. Arrodeia nossas vidas por cima, com patas aveludadas e garras ocultas. O que lhe entrega é a cauda, da qual não pode resistir os espasmos de alvoroço pela perda expressa das almas, equivalentes talvez à nossa “água na boca”.
E se é assim, sabei que os
bugalhos ficaram olhados. Digo, me assustei. Apesar de prevenido pelos
frequentes miaus deste meu novo bairro, troquei não gato por lebre, mas por
aquilo que não ouso nomear a terceira vez, mesmo que por conotações remotas.
Não, não se trata de mera superstição. Ao primeiro baque, fechei num
sobressalto meu livro de doutrinas ancestrais e fiquei ouvindo o roçar no mato,
por si bastante lúgubre. Acendi a luz da varanda, o chicote na mão, e fui. Um
passo, dois:
-- Mia-a-a-a-au.
Ora, eu já não desconfiava? Com as mãos na cintura, olhei o
bicho, gordo e limpinho, de coleira e medalhinha. Pst! fora!
Era o falso tinhoso quem se via agora retesado, enleado por
um segundo. Fez que ia pra cá, foi pra lá. Correu para o muro, estragou suas
belas unhas no muro. Eu só olhava, juro, nem me mexia! Caminhou para o provável
local de onde veio, calculou, ajeitou as patas e... plaft! Já vi gato
atropelado, por presunção, mas nunca tão patente imperícia felina. Garfield
ficaria envergonhado. Subiu de novo. “Vai, meu filho, você consegue”. Tof!
Sapateou, o traseiro igual uma âncora, até deslocar a telha, caindo gato e
telha, telha e gato.
Aí também era demais. Bati o pé, enxotei-o sem dó. Ou, por
outra, dei-lhe uma lição de humildade. Que nunca mais arrote suas anchovas na
presença dos amigos plebeus! Depois desta noite, pensava eu, nunca mais!
É que eu ainda não havia inventado o ditado: em gato
perfumado não se deve confiar. Humilhado por minha presença no momento mais
embaraçoso de suas sete vidas, invocou, sob os auspícios de Salem, as energias
dispersas dos fracassos de Toms e Frajolas e, com os três pelos emprestados de
seu amigo Félix, compôs a poção amoníaca que despejou sob meu umbral.
E quando cheguei em casa, o gato lá estava, o gato lá
estava. Sentinela no escuro, um Gato Risonho, cheio de pistas e gemidos filosóficos.
Fitou a careta minha, que procurava, guiada por emanações fétidas, a origem de
seu feitiço. Quando finalmente dei com ele, piscou, vergou-se em silêncio e
sumiu na treva.
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