PENÚRIAS ESCOLARES

Felino, como testemunha o adulto de hoje, exclamo ante a folha digital sensível aos meus comandos, indiferente à minha saudade: quanto demorei para pegar aquela fila! Na qual não estou por último. Não. A demora foi para desistir de um preconceito inútil e começar a enfrentá-la. Por dias e dias ou mais (talvez meses), circunvaguei a bicha, igual a um nauta lusitano a buscar especiarias indianas. Dissimulava se me perguntavam não vai comer? Não quero! Sentava num dos bancos, bem longe do cheiro tentador, ia para o pátio pular amarelinha ou trepar nas árvores. Arremessar pedras no campinho, até os braços doerem, ou contar mentiras para os colegas que ou traziam suas próprias lancheiras ou por razões desconhecidas me acompanhavam nessa minha penitência nada edificante. 

As amarelinhas eram disputadas. Para marcar a “casa”, usávamos os caules de monguba, que havia aos montes no chão do pátio. Eram bons porque não rolavam — as pedras rolavam, e caíam longe ou na linha, e a gente perdia a vez. Olhos atentos fiscalizavam os pés do saltador e às vezes gritava: “Pisou na linha, pisou na linha!”. E ai de quem perdesse o equilíbrio na hora de pegar a pedra (ou caule) – coisa que se fazia geralmente apoiado numa perna só. Aquele que primeiro chegasse no “céu” era o vencedor.

Não lembro o que me fez ceder, entrar na fila, experimentar o tal buraco quente. Desde então, passei a correr após o sinal do recreio, pois quem ficasse por último não repetia. E entrei para a torcida do buraco quente, o pão francês com carne moída, servido aleatoriamente uma, com sorte, duas vezes na semana. Queria buraco quente todos os dias. Pegava dois, dois e meio, quando sobrava. Era bom. E, um dia, no meio da fila, eu devo realmente ter refletido: ora, por que não vim desde o começo? Chegava em casa abrindo as tampas das panelas, dominado por um jejum de 14 horas. Minha mãe ralhava: Tá pronto ainda não! Por quê? Sei lá, as merendeiras tinham um aspecto seboso, os potes, as colheres, eram de um plástico gasto, parecia mordido. Isto somado ao fato de “ser do governo” me lembravam de coisas ruins ou tristes: meu pai cheirando a esparadrapo e minha mãe sempre, sempre doente.

Anos depois me mudei, e passei a frequentar outro colégio, já sem merendeiras que pareciam salgar as farofas – que eu não comia – com suor, e sem potes que eram um frasco de curandeiros. Tinha a D. Odila, a qual vendia caro os pasteis fritos numa gordura marrom, murchos e sem recheios. A ajudante passava perguntando: E pra você? Pra você? Você? E agora eu rodeava a cantina não com nojo, mas com inveja dos que gastavam oitenta, cem reais e tinham uniformes novos todo ano, enquanto os meus, herdados de meu irmão, iam ficando transparentes.

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