ADENIUM OBESUM
No mesmo lugar, o velhinho e o trouxa dos brinquedos de madeira. Por que no mesmo lugar? Porque há um ano passeávamos pelo parque de exposições, na semana do aniversário da cidade. Além das variedades gastronômicas e da pequena mostra tecnológica, nada de mais interessante se encontraria por lá, senão, no canto mais escondido, o velhinho e seu varal de barbantes, que formava um legítimo cordel nordestino.
Tudo o que ele precisava era tudo o que tinha: um tubo de barbante
(talvez nem fosse um tubo, só um fio suficientemente comprido), uma caixa para
as "revistinhas", e uma cadeira de plástico. E era o melhor atrativo daquele
salão. Cheguei, em princípio, curioso dos gibis (pensava que fossem gibis), que
qualquer coisa impressa me atrai, depois da simpatia do senhor que me cativou
dizendo: “esses são pra ler com as mãos”.
Geralmente, não se podia tocar nos produtos à venda, dizia ele, mas
aqueles folhetos eram sim para abrir, folhear, isto é, para ler com a visão, o
tato, a audição. Começou assim; daí a trinta, quarenta minutos foi rápido. O
franzino trovador nos informava de suas leituras. Dentre os autores que
identifiquei, cito dois: Dante e Virgílio, o que é assaz surpreendente se
considerarmos o diálogo inesquecível que tive com algum acadêmico de letras numa universidade pública no interior do Brasil:
“...o Eneias do Virgílio”. Resposta após ligeira reticência: “aquele barbudo que
morreu? da propaganda eleitoral? Era engraçado”.
Pena que o pobre senhor, um tanto fanhoso, carente de cuidados
odontológicos, não articulava bem suas palavras e, a despeito de meu esforço,
seu monólogo ficou parecendo o de um rádio mal sintonizado. Estou certo de que
ainda falou de Bach e de Tomás de Aquino. Era protestante, mas, dizia, bastava
um Santo Tomás para o catolicismo merecer nossa reverência.
Bem, foi esse o personagem que revi; e no mesmo isolamento, na mesma melancolia resignada. Desta vez tinha ao menos a companhia do segurança que guardava a saída de emergência. Eu queria também estar perto dele. Uma rodinha se formou no corredor, defronte à barraca de doces coloniais, e tive de adiar o reencontro. O papo era ruim e, pé ante pé, esgueirei-me pelas cocadas e bolachas de polvilho, disfarcei junto à quitanda de sucos e de longe estirei o braço – como vai o senhor?
Mas voltemos ao trouxa dos brinquedos, o vilão ainda não apresentado – pois era um idiota que não parava de buzinar o seu fantástico-magnífico caminhãozinho de pau, ruído que diminuía ainda mais minha pouca compreensão da singela sabedoria do homem dos cordéis. Agora, com o brinquedo vendido, ou avariado (tomara!), o velhinho ainda sem consertar os dentes – o que já supunha – era sentar e aprender.
Ia me acomodando; ele, falando de sua penúria e impossibilidade de publicar os próprios versos. Em seu colo, uma caixa de sapatos cheia de (cordéis?), as roupas muito batidas. Falava; e sem tempo nem de olhar as capas decoradas de maravilhosas xilogravuras, alguém me puxa: “vamos?”, “um momento, estou conversando com...”. Antes de terminar a frase, voltei-me para o miúdo poeta e vi-o com um sorriso. pronto para se despedir: “Vá! vá! não te preocupes”. Apertei-lhe a mão e fui, guiado por meu autoproclamado benfeitor, que ainda completou: “Tirei você duma enrascada: esse velho é uma matraca!”. Por preguiça e covardia, me resignei, com a diáfana esperança de encontrá-lo novamente no ano seguinte. Dali fomos a um lugar mais adequado à juventude e mais do gosto geral.
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