A INVENÇÃO DA RAPADURA

Antes de ser anunciado, levantou-se, abotoou o Giorgio Armani azul turquesa de finas listras brancas e assim ficou, ereto, muito sério e pronto para avançar. O cerimonialista seguia o protocolo do falso suspense sobre a identidade do palestrante, aquele mesmo da programação amplamente divulgada antes e durante o evento, do qual era aliás a principal atração. Ele, o tal, a cinco passos do pequeno lance de acesso ao palco e exalando um perfumadíssimo Jean Paul Gaultier, o Professor Pós-Doutor pela Charm University e presidente do IBQE e editor emérito da Revista Interdisciplinar da Rapadura e do Pão com Banha, bem como coordenador e cofundador do grupo de estudos respectivo (posteriormente unido ao grupo do pão com banha, daí o “interdisciplinar”) e colaborador de tantas outras instituições e revistas científicas enfim, flutuou em direção às escadas, sob a ovação cordial da plateia, honraria especialmente mais intensa nas poltronas da primeira fila, onde deixara seus pares. Deu a mão ao cerimonialista, sorrindo pela primeira vez, acenou à mesa ao centro do palco e sacudiu a cabeça ligeiramente, em atenção aos aplausos. Pigarreou. Um ajuste sutil no microfone, uma boa alisada no cavanhaque, para afinal dizer: “Obrigado, professor Fulano, meu amigo que há muito não via. Agradeço imensamente o convite. É uma honra estar aqui. Antes de dar início à minha fala, gostaria de cumprimentar… através da qual estendo as saudações aos demais integrantes da mesa”. Após um gracejo, um elogio à instituição organizadora, congratulações ao público presente — guerreiro, firmemente resistia, seguia acompanhando o luminoso evento numa quarta-feira de futebol —, expôs a todos, em forma de autoadvertência, sua faceta simultaneamente humilde e descolada: era impossível competir com a juventude plugada e com os meios de comunicação de bolso.

— Neste meu livro, “A invenção da rapadura”, eu pretendi demonstrar…

Era um calhamaço de 575 páginas, (quinhentas e setenta e cinco!), sobejamente ilustradas, está claro (o que, convenhamos, é algo ainda mais extraordinário).

— A rapadura, essa que nós conhecemos hoje, não é açoriana como muitos propõem. Surgiu no Brasil, seguramente no século XVII, entre os escravos africanos. Há indícios, porém, que remontam sua origem lá entre a antiga civilização egípcia. Aquele povo sábio, grande desenvolvedor das ciências, especialmente da química, produziu um alimento nutritivo, baratíssimo, capaz de sustentar a massa de escravos, os trabalhadores que possuem o verdadeiro mérito pela construção das pirâmides, e que era muito semelhante ao tijolinho doce (risos da plateia) que nós consumimos hoje. E faz todo o sentido porque aquela realidade não era tão diferente da nossa…

Tratava-se, como se vê, de um grande apologista da rapadura:

— A rapadura já é uma característica cultural brasileira. Revela as condições de vida de um povo, ajudando a compreender nossa tão combatida – por alguns, né, outros preferem manter o status quo – a tão combatida desigualdade social. Vejam quanta importância tem essa barrinha marrom! É preciso tomar consciência disso! A rapadura não deve ser ignorada. Ao contrário, ela deve adquirir, devemos dar a ela, a magnitude, a dimensão, uma dimensão que seja proporcional a essa força catalizadora de transformação sociocultural brasileira e, até, latino-americana. Isso. Só para ilustrar: durante meus estudos, estive na Alemanha, passei um período na Alemanha, na Universidade. Lá na Alemanha concluí o doutorado que ensejou a publicação deste livro. Bem, lá na Europa, debruçado, tentava entender essa maravilha da humanidade. Meus camaradas (ele se segurava na tribuna para conter a exaltação), pasmem, os alemães não conhecem rapadura!

Babava, parecia mesmo sentir um desejo gravídico de rapadura. Imperdoável não a terem servido no coquetel de encerramento.

De teor semelhante ao satírico comentário deste cronista deverá ter sido o cochicho de um dos integrantes da mesa ao seu colega, o qual se inclinou com curiosidade e depois sorriu, o que para alguns consistia em prova suficiente de que os mais brilhantes cérebros estavam atentos ao tema peculiar. E muitíssimo atento estava o aplicado mestrando, de pernas cruzadas, a caneta entre os dedos, o bloco de anotações. Meneava sua cabeça miúda em concordância às palavras do mestre e lançava apontamentos esparsos no papel, a fim de blindar sua dissertação contra as críticas menos lisonjeiras da banca avaliadora. O trabalho era um tanto modesto, se comparado ao do douto rapadurista: até então somava 142 páginas. Limitava-se a analisar os seus aspectos químicos e biológicos, ou seja, os elementos constitutivos da “rapa-dura”. “Rapa”, esclarecia a introdução, porque se tirava uma lasca, uma rapinha, e “dura” de duro mesmo, rígido. O graduado com especialização em processos artesanais de produção de rapadura era professor dedicado como poucos à causa rapadurista e convencera um de seus pupilos a se juntar ao crescente grupo de pesquisadores do fenômeno rapadurístico e rapaduresco, assim cumprindo com o seu papel de transformador social, que é um papel que cabe aos privilegiados, aos membros da elite pensante – cabe a eles conscientizar a população da importância da rapadura na culinária nacional, o seu valor nutritivo, histórico, sociológico… E cultural, sim, e cultural.
Enfim, como não poderia deixar de ser, o jovem aluno desenvolvia um artigo científico sobre a relação da rapadura com a diminuição dos níveis de desnutrição das populações carentes de uma região canavieira do nordeste, cujo nome ele não recordava e cuja localização geográfica não lhe havia ocorrido conhecer. Buscava na escassa bibliografia — uma tristeza o descaso do cidadão para com o valor mais alto: o conhecimento!, aquilo que não se pode tirar da gente; o dinheiro podem nos roubar, mas o conhecimento, ah! esse fica gravado na mente —, tentava encontrar na bibliografia as referências de um assunto que ele próprio não dominava. Onde achar informação? Digo, achar não, porque não perdi nada, o correto é dizer: onde procurar informação? Debalde se perguntava, e reduzia a obra gigantesca a um apanhado confuso e impreciso, de no máximo 60 laudas, das ideias expostas no clássico “A invenção da rapadura”.
Pena o jovem pupilo, representante da terceira geração de estudiosos do rapadurismo, não ter ido ao evento, onde os calouros de sua IE (Instituição de Ensino) estavam em peso.
— Agradecemos a presença da Faculdade…
O mestre de cerimônia ia já encerrando o evento. E como era lamentável observar que os acadêmicos ali presentes queriam saber mesmo era das horas extracurriculares. Infelizmente não se dá valor ao saber neste país. Os discentes, os profissionais de amanhã, olhavam o palco, as paredes, as cortinas, completamente alienados. Quando não, tinham os olhos vidrados na tela do celular. No que diz respeito à palestra, apenas uma coisa lhes afligia: De volta à faculdade, o professor pediria um resumo valendo a presença ou quem sabe até um pontinho para evitar exame. E os alunos? Bem, os alunos entregariam um parágrafo, o mesmo parágrafo escrito em 39 versões. Mas haveria um ser — gente, só no Brasil acontece essas coisas —, um sem-vergonha que escreveria, após longa sessão de massagem capilar, o seguinte:

— Rapadura é doce mais não é mole não!

E ai do professor se não aceitasse a sua "redação"!

O curioso é que, enquanto a plateia se retirava, se ouvia de fundo um forrozinho, em que o iletrado Luiz Gonzaga cantava assim:

Eu lhe dei vinte mil réis
Pra pagar três e trezentos
Você tem que me voltar
Dezesseis e setecentos
Dezessete e setecentos
Dezesseis e setecentos

Mas se eu lhe dei vinte mil réis
Pra pagar três e trezentos
Você tem que me voltar
Dezesseis e setecentos
Mas dezesseis e setecentos?
Dezesseis e setecentos
Por que dezesseis e setecentos?
Dezesseis e setecentos

(...)

Sou diplomado
Frequentei academia
Conheço geografia
Sei até multiplicar
Dei vinte mangos
Pra pagar três e trezentos
Dezessete e setecentos
Você tem que me voltar

É dezessete e setecentos
É dezesseis e setecentos
É dezessete e setecentos
É dezesseis e setecentos

Mas se eu lhe dei vinte mil réis
Pra pagar três e trezentos
Você tem que me voltar
Dezesseis e setecentos
Mas dezesseis e setecentos?
Dezesseis e setecentos

(...)

Eu acho bom
Você tirar os noves fora
Evitar que eu vá embora
E deixe a conta sem pagar
Eu já lhe disse
Que essa droga está errada
Vou buscar a tabuada
E volto aqui pra lhe provar

Você tem que me voltar
Dezesseis e setecentos
É dezessete e setecentos
É dezesseis e setecentos

Mas se lhe dei vinte mil réis
Pra pagar três e trezentos
Você tem que me voltar
Dezesseis e setecentos
Por que dezesseis e setecentos?
Dezesseis e setecentos

Mas rapaz olha aqui
Se eu lhe dei vinte mil réis
Pra pagar três e trezentos
Você tem que me voltar
Dezesseis e setecentos
Mas é dezesseis e setecentos?
Dezesseis e setecentos

(...)

Não, pera aí
Mas se lhe dei vinte mil réis
Pra pagar três e trezentos
Você tem que me voltar
Dezesseis e setecentos
Mas porque dezesseis e setecentos?
Dezesseis e setecentos

Mas olha aqui rapá
Dezesseis e setecentos
Dezesseis e setecentos?
Dezesseis e setecentos
Mas não é dezessete e setecentos?
Dezesseis e setecentos
Dezesseis e setecentos?
Dezesseis e setecentos

Então deixa
É por isso é que não gosto
De discutir com gente ignorante
Por isso é que o Brasil
Não progrede, vixe!

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