SUPERSTIÇÃO

Às vezes ir de frase em frase é pedir demais e a gente se contenta com uma palavra de cada vez; a primeira que vier:

— Engraxar.

Digo e passo a escrevê-la. Súbito, me interrompo, erguendo a cabeça com espanto:

— Como?!

E respondo:

— Engraxar, ué, engraxar… Vai, escreve!

E treplico:

— Mas como engraxar?

Assim começo, ou começamos, a altercação. Então surjo, não sei de onde, agora como um sábio, munido de explicações:

— Tens de entender o contexto, ora. Engraxar, em correspondência ao texto anterior, no qual afirmas que é "difícil começar", indica que deves relê-lo, à espera de uma expressão de contentamento, a saber: "ah, isto ficou bom!"

— E quem és tu? — pergunto, ignorante de minhas próprias vozes.

— Ainda não entendi o engraxar…

(Falando ao mesmo tempo e com ar superior) — Presta atenção! Meu velho, a tarefa é árdua e o natural é batucar na escrivaninha com as unhas esgravatadas.

— Meu velho é a puta que o pariu!

— É puro o Graciliano!

— Já foi, hoje não é mais. Li-o quase todo em 2014.

E o tempo passa. Já estou batucando na escrivaninha, conforme previsto. Entediado:

— Não põe música, não põe!

— Você disse… música? – e aqui estou, obviamente, com uma cara de corvo do Woody Woodpecker.

No fundo aparece, de óculos escuros e bigodinho ornando um sorriso gengival, o Stevie Wonder.

— Oi. Quer dizer: hello!

Ele está sentado diante de um piano e começa a gingar como o próprio Stevie Wonder, porque ele é, afinal, o próprio Stevie Wonder.

— Você é muito bom no gingado e toca um piano pra burro!

— Sim, nem parece que é cego!

— Imbecil! Isso não se diz!

— Para de exclamar!

O Stevie continua firme no Superstition, a ignorar minhas grosserias. Penso, enquanto o ouço, numa razão para não descartar estas linhas. O que também continua é a disputa:

— Meu velho, uma palavra, vamos.

— Superstição! — digo rápido — Superstição. Como naquele vídeo da filosofia africana.

— Não vá procurar, não vá procurar, não… ai, puta merda!

Abro uma nova abra no navegador. Só a busca leva precisos doze minutos, de infestado que anda o YouTube de Filosofia Africana. Tento “filosofia africana” e só dá vídeo sério! Vou de “doida da filosofia africana” e me surpreendo – com diáfana esperança de o “doida” ter sido ignorado pelo buscador – ao descobrir que “a verdadeira filosofia surgiu não surgiu na Grécia não”. Outras tentativas frustradas ocorrem antes de afinal me lembrar da palavra-chave: simpatia*. E até o mais manso em mim me admoesta:

— Olha, parabéns – você merece!

— Meia-noite, tens de ir dormir!

— E não é que a doida é de Curitiba?

Os dias passam junto com a curiosidade, e quando volto ao presente texto reencontro o velho Stevie, agora com Isn’t she lovely, que não é tão legal quanto a outra.

— Põe Superstition.

— Não.

— Por favor!

— Não.

Na tela, o cursor pisca, pisca, pisca e para. O engraxar continua a não fazer sentido para alguns de nós, mas a proposta, felizmente, não deixou de nos cativar. A barra de rolagem vai e volta, vai e volta…

— Está engraxado. Percebeu?

— Percebi, Nelson, percebi. Só não me abstenho de achar idiota.

— A crônica como ela é…!

— Quem é quem nesse sarapatel?

Graciliano e Nelson. Stevie e…

— Michael Jackson. É! Pensa que é mole? Au!

Michael está dançando as primeiras batidas do Billie Jean. Salto do Word ao Chrome para examinar o seu figurino. E é aquele mesmo: gravata borboleta vermelha e camisa salmão, calça e jaqueta de couro. A dança é que ficou pra depois – de início caminha tristonho, com uma mão a apoiar a jaqueta no ombro, a outra a levar, digamos, um tostão, que às vezes lança para cima. A cada passo, os inesquecíveis sapatos brancos com ponta e salto pretos acendem na calçada uma luz opaca e quadrangular.

—É oportuna, neste momento, ainda que lastimável, a presente ignorância de nosso inculto e belo português!

Muito bem, agora quem ressoa é o Bilac, cujo poema, "Só", foi até agora o único que me marcou.

Até que deu sorte esse negócio musical. Um texto novo, que termino já, por falta do que lhe acrescentar.

— Mas continua!

Não, não digo mais nada. Vai que dá azar.

* Entenda a referência cultural inútil: https://www.youtube.com/watch?v=yCtpSR_q8qc

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